Um olhar psicanalítico sobre “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”

Por Suelen Moraes

Um gracioso filme francês dirigido por Jean-Pierre Jeunet em 2001. Retrata a história de Amélie Poulain (Audrey Tautou), uma jovem criativa e sonhadora que, ao deixar o ambiente pouco afetivo da casa do pai, mudando-se para o bairro parisiense Montmartre, se depara com a incompletude de sua existência, fato que a mobiliza e a impulsiona a buscar um novo rumo para sua vida.
A fotografia do filme, intensa e impactante, tem suas cores inspiradas nas obras do artista plástico brasileiro Juarez Machado. Traz uma trilha sonora igualmente intensa, com músicas românticas e suaves, porém com um tom dramático e até melancólico.
É rico em detalhes e simbolismos, com cenas e experiências que muito nos identificamos, por retratar o nosso cotidiano e certas peculiaridades do ser humano, com notável sensibilidade e irreverência.
Um dos diversos pontos que merece destaque no filme é a questão da Sensorialidade de Amélie, que sente prazer em enfiar as mãos em sacos de grãos, quebrar a casquinha do crème brûlée com uma colher, jogar pedras no rio, entre outras peculiaridades.
Numa compreensão psicanalítica, é a partir da experiência somática/corporal que nossa mente começa a tomar forma, como Freud postula, o ego (núcleo de personalidade de uma pessoa) é inicialmente corporal. Acredito que facilite pensarmos na expressão dos bebês, que interagem com o mundo inicialmente à partir de expressões corporais.
Donald Woods Winnicott (Pediatra e Psicanalista) coloca que, no início da vida de um bebê, a mãe deve regredir e se voltar totalmente para este bebê. Ele deve continuar a ser gestado na mente da mãe, pois ainda não tem mente própria. Ao longo do desenvolvimento, essas sensações corporais do bebê devem evoluir para emoções; ligar o que estava no físico para o emocional, e a mãe tem fundamental importância nesse processo. É ela quem nomeia e quem vai de encontro com as sensações angustiantes de seu bebê, causando conforto não só físico, como mental. Novamente podemos pensar na situação do bebê, que ao chorar por um desconforto angustiante em seu estômago, encontra uma mãe pronta pra ir ao seu encontro e dar fim a esse desconforto, nomeando-o como fome e lhe transmitindo que esse desconforto pode ser cessado.
Cabe salientar que quando me refiro a mãe, me refiro a função materna desta, que pode ser exercida por uma avó, uma tia, um pai, entre outros.
Quem tiver interesse em se aprofundar nessa relação inicial entre mãe e bebê, sugiro as obras de Winnicott: “Preocupação materna primária” (1956) e “Os bebês e suas mães” (1987).
A partir da compreensão dessa vivência inicial, podemos pensar numa falha no desenvolvimento emocional de Amélie. Nela é bastante presente a sensorialidade, contrapondo com uma vida emocional empobrecida, a qual não teve possibilidade de desenvolvimento, assim, seu estado emocional interno, com essa impossibilidade de desenvolvimento é até ameaçador, onde as emoções vistas como doença. É um estado de mente primitivo.
Amélie tem um pai que é considerado um “iceberg”, com lábios contraídos e coração duro. Tem mãe igualmente fria e metódica, além de sofrer dos nervos.
Em seu ambiente familiar não existem vínculos empáticos e as emoções não tem espaço para serem expressas, e como já citado, são vistas como doenças, como demonstra a situação do filme, onde o Pai de Amélie, ao examiná-la percebe seu coração acelerado, fato que ocorre devido a emoção que esse contato íntimo com o pai, que ocorria apenas nos exames mensais, ocasiona. É então diagnosticada como portadora de anomalia cardíaca, não podendo frequentar a escola ou brincar com outras crianças.
Sua mãe, igualmente não dá conta de nomear suas emoções, o que pode ser exemplificado na situação onde, seu peixe e melhor amigo, tenta suicídio. Em intensa angustia, Amélie se desespera e grita. Nota-se a impossibilidade de suportar as questões emocionais que a filha demanda e frente a expressão de angustia da mesma, fica ainda mais doente dos nervos. Amélie fica mais uma vez com o desconforto, a angustia, sem amparo emocional.
Penso que essa situação simbolizada no filme se faz presente em nossa vida atualmente, na qual ocorre a impossibilidade de expressar e vivenciar as emoções, tristezas são rapidamente diagnosticadas como depressão e medicalizadas, energia infantil em TDHA, também medicalizadas, entre outras situações, que poderão ser melhor abordadas em outro momento.
Retornando a vida de Amélie, penso no impedimento de frequentar a escola, resultando na impossibilidade de realizar novos contatos, ter novas experiências e perceber que existem outros modelos de relacionamento. Quando somos crianças, o contato com o outro nos dá a possibilidade de perceber que existem outras realidades além daquela vivida no ambiente familiar. Amplia nossa percepção.
Ao passo que vamos descobrindo Amélie, vemos o quanto ela é observadora. Repara em detalhes tudo que a cerca, desde as coisas e situações mais simples e corriqueiras. É uma investigadora, cheia de curiosidade com o mundo. Penso que a curiosidade é justamente um elemento fundamental em sua vida. Amelie esta sempre em busca, quer aprender, descobrir e conhecer. É o combustível que a move frente a uma vivência com possibilidades tão limitadas.
O elemento curiosidade é importante na vida e personalidade de toda pessoa, pois permite o relacionamento com as experiências, pessoas e mundo; permite o aprendizado. É comum ouvirmos que a criança curiosa é a que mais aprende.
Uma vivencia solitária rendeu a Amélie uma boa dose de imaginação e criatividade, sendo o que lhe restou frente aos limites e danos que o isolamento lhe causou. Encontrou saída para sua solidão em sua própria imaginação.
A solidão ocupa um importante papel no filme e principalmente na vida de Amélie. Uma solidão interior, que independe de circunstancias externas. Mesmo após sair da casa dos pais e ter diversas pessoas a sua volta, a solidão ainda se faz presente. Também apesar de graciosa sua interação com alguns objetos e situações, são interações solitárias.
Como já citei, seu melhor amigo era um peixinho dourado, que vivia num pequeno aquário. Um animal que não possibilita interação, pois está cercado por sua redoma de vidro. Penso no dito popular de que peixes são animais sem alma para simbolizar essa falta de vida e interação que havia na relação entre Amélie e o melhor amigo, e na tentativa de suicídio do mesmo como simbolizando a hostilidade presente nesse ambiente. O “animal sem alma”, que ocupa o lugar de melhor amigo de uma criança, tenta suicídio!
Nada contra os peixinhos de estimação! Mas o filme nos traz de forma caricata toda essas simbologias, que nos permitem compreender a subjetividade dessas relações.
Uma de mente frágil, como a da Amelie, pode estar aparentemente bem, como ela ficou com as situações ao longo do filme, mas se passa por uma situação intensa que revive ansiedades arcaicas, pode desmoronar, que é justamente o que ocorre quando pensa que pode ter perdido o Nino, rapaz por quem se apaixona, se transformando em água, escorrendo pelo chão, se liquefaz. Seu ego não desenvolvido, não consegue suportar essa perda.O-FABULOSO-DESTINO-DE-AMELIE-POULAIN02
Questões sobre vida e morte são a bastante evocadas no filme e morte e o luto também são elementos que merecem destaque.
Certo dia, Amélie é levada a igreja para pedir um irmãozinho. Ocorre que ao sair da igreja, uma moça que se suicidava caiu em cima da mãe de Amélie, que veio a falecer.
Amelie se da conta de estar agora sozinha realmente. Se depara com a ausência física da mãe.
A dor que ocorre no processo de se deparar com essa realidade; de que a pessoa não vai mais voltar, é o processo de luto. No filme podemos imaginar como foi esse processo de luto, frente aquela vivencia familiar que não permitia expressar os sentimentos.
O pai de Amélie tornou-se depressivo e se ocupava na manutenção da construção de um mausoléu para a falecida esposa, atraído pela morte, enquanto sua própria vida tornava-se distante, o impossibilitando de olhar para a pequena filha. Fica identificado com o que foi perdido.
Amélie, ainda criança, se deparou com essa realidade. Ambos sem falta de apoio emocional. Podemos pensar que isso contribuiu ainda mais para o seu retraimento.
Numa cena posterior a esse acontecimento vemos o ursinho de Amélie abandonado no jardim, simbolizando o quanto essa perda da mãe e falta de apoio do pai podem ter rompido com sua infância. Em seguida vem a afirmação de que lhe restou apenas sonhar com o dia em que deixaria a casa do pai.
As mudanças começam a acontecer justamente após sair do universo limitado da casa de seu pai. Deixar essa mundo já é uma notável mudança, num reconhecimento de que aquele ambiente não é mais suficiente. Saliento aqui, um fato trazido por uma amiga, também psicóloga, de que culturalmente os franceses deixam a residência familiar no início da vida adulta.
Amélie passa então a ter novas experiências, porém ainda sem a ligação emocional com as mesmas. No ambiente de trabalho tem contato com outras pessoas, cada uma delas, também de forma caricata, retratam nossas neuroses, dificuldades, impossibilidades e fixações.
Após a notícia da morte de Lady Di na TV, acha uma caixinha que contém para ela um tesouro de pequenas recordações infantis, escondida ali por anos, pertencente ao antigo morador do apartamento. Isso a possibilita a entrar em contato com sua própria história e seus aspectos infantis. Ela começa a entrar em contato consigo mesma.
Essa situação mobiliza algo em Amelie, como se pela primeira vez, apesar de tantas perdas pelo caminho, a jovem pudesse se deparar com a sua própria de finitude. A morte aparece como possibilidade, e o que poderia ela guardar numa caixinha? Quando encontra o dono da caixinha, é questionada se tem filhos, se depara com seu próprio não. Também quando conversa com a zeladora de seu prédio e é questionada se já recebeu cartas como a dela, ou seja, se já amou ou foi amada, novamente responde que não, o que lhe causa angustia ao pensar a própria vida e tudo que não construiu.
Começa então a mobilizar-se pelas vida das pessoas que estavam a sua volta, através de diversos planos e ações para realizar seus desejos e para tira-los da estagnação de suas vidas.
Amelie ainda não consegue olhar para si própria, realiza seus próprios desejos através do outro. Ajuda o outro a organizar a vida, num processo onde internamente vai se fortalecendo.
As conversas com o “homem de vidro”, morador de seu prédio e portador de uma doença que lhe resultou em ossos fracos e quebradiços, possibilitam aos poucos que suas questões internas tenham vazão.
Por meio de diálogos cheios de vida e emoção, contrastando com os diálogos que tem com o próprio pai quando vai visita-lo, o homem de vidro a faz refletir sobre suas dificuldades internas.
O homem de vidro, no entanto, vem retratar a estagnação da vida, as impossibilidades. Apesar de sua habilidade, limita-se a fazer cópias de quadros de Renoir. Não consegue ter autenticidade e pintar seus próprios quadros. Não dá pra ser ele mesmo, pois ele mesmo é muito frágil! Percebemos o quanto sua mente e capacidade de reflexão foi desenvolvida, no entanto também vivia um universo limitado por conta de seu esqueleto, nos trazendo a mensagem subentendida de que nada adianta a capacidade de reflexão se não a combinarmos com a capacidade de agir e reagir.
Amelie coloca obstáculos quando encontra alguém prestes a romper essas barreiras que foram formadas ao longo de sua vida. Utiliza estratagemas para evitar o confronto e amenizar a angústia frente ao novo e desconhecido. Demonstrando a impossibilidade em lidar com as questões reais da vida e tudo que isso demanda emocionalmente. Isso pode ser visto no filme nas situações envolvendo Nino.
No filme vemos o álbum de fotografias de Nino, que coleciona fotos rasgadas e jogadas no lixo, montando-as como um quebra-cabeças. Esse álbum, que aos poucos vai tomando corpo e sendo decifrado, simboliza o mesmo processo interno de Amelie. Quando o álbum toma forma, ela entrega-o ao dono e também se entrega. As marcas e falhas de sua vida emocional não mais a impedem de viver na própria pele suas experiências. Contudo, isso ocorre ainda com a ajuda do “homem de vidro”, nesse momento retratado como sua consciência e impulso, e também ainda a seu modo sensorial. As palavras e nomeações ainda não podem sem vividas.o-fabuloso-destino-de-amelie-poulain
Percebemos a evolução de Amélie ao longo do filme, que pode ser comparado a um processo de análise, no qual o paciente vai aos poucos e no seu tempo, enriquecendo seu mundo interno por meio da possibilidade de reflexão.
Finalizando esta observação psicanalítica sobre o filme, penso que Amelie teve uma infância que dificultou seu amadurecimento emocional e mesmo com muito receio, medo e angústias primitivas que retornavam, se permitiu entrar em contato com as próprias prisões emocionas; primeiro de outras pessoas e, quando mais fortalecida, de suas próprias.
Apesar de toda desarmonia inicial, ela consegue digerir e metabolizar toda sua pesada carga genética, ressignificando suas vivências emocionais. Aos poucos foi construindo condições internas para seu enfrentamento interior.
Quando terminei de assistir este filme, veio a minha mente a experiência do feijão na caixa fechada, na qual a plantinha se direciona para uma pequena entrada de a luz.
Assim, o filme retrata a crença de capacidade de reparação do ser humano e no desenvolvimento de suas possibilidades. A essência do filme é essa: fé em nossa capacidade frente aos dissabores e dificuldades da vida. É a possibilidade de entrarmos em contato com nossas próprias dificuldades internas e, aos poucos, nos fortalecermos para lidarmos com elas.

Deixo como reflexão a seguinte frase de Vinícius de Morais:

“…Quem de dentro de si não sai
Vai morrer sem amar ninguém”

Suelen Moraes é psicóloga e colaboradora do Sublimação – Arte e Psicanálise. 


Posted

in

by

Comments

Uma resposta para “Um olhar psicanalítico sobre “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain””.

  1. Avatar de Paula
    Paula

    Adorei o seu artigo:) sempre me identifiquei com a personagem Amelie. Ao ler o seu texto, percebi como a história é semelhante à minha em quase tudo. Obrigada:)

    Curtir

Deixe um comentário